Boa hora.
Talvez a expressão mais honesta e pura que exista. Com certeza, minha favorita
nos últimos meses. Ao ouvi-la, um sorriso involuntário iluminava meu rosto e o
pensamento transcendia espaço e tempo por alguns segundos. Que Deus lhe dê uma
boa hora. Existe desejo mais puro?
A minha
hora, a nossa hora foi abençoada – e todos os segundos foram perfeitamente
compondo a hora mais feliz da minha vida. Foi assim:
“Caraca, só
aquela vaca da Gisele Bündchen que não sente dor, pelamordedeus”- foi o
primeiro pensamento que invadiu minha mente ao ser despertada por uma contração
às 6h20 da manhã de uma já ensolarada quinta-feira.
“Ah não, já
preciso fazer xixi de novo – não agüento mais ir ao banheiro no meio da noite”,
foi o segundo.
Desta vez,
porém, senti o liquido saindo antes mesmo de eu me levantar... e corri para a
privada. “Será?” – era tudo o que eu pensava enquanto ouvia o barulhinho de
água. Levantei e olhei para dentro do trono: e agora? Será que isso é xixi? Ou
estourou a bolsa? Sem ter certeza absoluta, resolvi voltar para a cama e dormir
um pouco mais... dei 3 passos e senti mais liquido saindo de dentro de mim –
corri para a privada! É a bolsa! Uhuuuuuuuuuuuuuuuuu! Vou finalmente sentir uma
contração de verdade! Uma mescla de sentimentos tomou conta do meu coração –
felicidade, surpresa, alívio, e agora? Reparei que conforme eu me mexia, saía
mais liquido e dei uma rebolada para fazer um teste... levantei e olhei de novo:
lá estava ele, o primeiro sinal de que minha bebê estava pronta para iniciar
seu ritual de passagem – um liquido amarelado, fosco, com pedacinhos branco – a
bolsa tinha rompido! Não dei descarga e tirei uma foto, caso a médica quisesse
ver. Queria ligar para minha irmã e para a Dra. Betina, mas resolvi esperar um
pouco – afinal era muito cedo. Reparei que as contrações estava vindo com certa
freqüência e comecei a anotar os minutos, 12-14 entre cada. Corri para ver meus
livros de preparação para o parto – quando mesmo devo ir ao hospital?
As 7h20 não
me contive e avisei minha irmã, que recebeu a notícia com enorme felicidade e –
se bem a conheço – um pouco de ansiedade. Disse que ia arrumar as coisas e
estaria a caminho de São Paulo em breve. Esperei alguns minutos para não
acordar a médica e por volta das 8h00 dei a notícia à Betina – que também
respirou com alivio – a pequena chegaria por conta própria, na hora dela, sem
acupuntura, sem descolamento de membrana, sem dores e inconvenientes
adicionais. Petit Gabi, a caminho.
As horas
tornaram-se minutos e nada fiz além de anotar as contrações a manhã inteira...
está chegando a hora, logo mais minha pequena estará aqui, que felicidade...
puts, como dói... Quando me dei conta, já era cerca de 13hs e minha irmã, meu
cunhado e minha sobrinha Lis estavam chegando. Foi aí que me deu conta que ficaria
com vergonha de ter meu cunhado na sala enquanto eu gemia de dor... Minha irmã
durona, nem titubeou, ele vai ficar aí e pronto. Ok, ok, tudo bem... Durona,
metódica e super organizada – chegou com dois cronômetros, aplicativo do iPad
que mede as contrações, mochila do hospital com mais que o imaginável, de
incenso a energético. Pelo telefone, a médica me acompanhava “bom, pelo visto
ainda vai demorar, você está conseguindo conversar normalmente”.... Lógico,
pensava eu, sou uma mulher forte, já tirei as amígdalas e a tireóide, aposto
que o parto nem vai doer nada... ...doce ilusão.
Enquanto Lê
e Lis brincavam no tapete da sala, eu e Naninha fomos dar uma volta pelo prédio
e um pulinho na farmácia para acelerar as contrações... e confesso que esse
negócio de andar no pré-parto realmente funciona... Por volta das 18hs, Betina
chegou em casa, sorridente e tranqüila, como sempre. Calmamente me examinou e
para tristeza de todos, preferiu não dizer quantos centímetros de dilatação eu
tinha, mas deixou claro que ia demorar. O sol deu lugar a uma tempestade que
trouxe as águas de março em fevereiro e inundou nossa querida cidade. Enquanto
a família Le Lis Drica foi jantar e trazer algumas guloseimas do mercado para
agüentarmos a madrugada adentro, eu me deitei no quarto e Betina deu uma
cochilada no sofá. Assim que levantei, recebi uma massagem relaxadora no corpo
inteiro e aprendi a respiração que deveria fazer durante as contrações.
Aaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhh, de dentro e de baixo para fora e para cima, com força.
Aaaaaaaaaahhhhhhhhhh, treinava eu. Foi aí que a Betina revelou o segredo,
estava com apenas 3cm de dilatação – ou seja, o negócio ia ser
loooooooooooooooongo.
Assim que a
family retornou do mercado e me serviu uma mini pizza, por volta das 21hs, a
Betina saiu para jantar – quando voltasse iríamos para o hospital, a bebê
deveria chegar na madrugada de sexta. Avisei minha mãe e meu pai e em menos de
15 minutos a mini pizza fazia seu trajeto ao contrário – vomitei (PS: o organismo
é fantástico, vai limpando tudo - eu tinha feito cocô 3 vezes de manhã).
Aaaaaaaaaaahhhhhhh....
eu vestia uma saia e a parte de cima de um biquíni para facilitar a massagem
nas costas e a bolsa de água quente que meu cunhado e minha irmã colocavam na
minha lombar durante as queridas contrações... O perfume do incenso se
misturava ao cheiro do estoque de fraldas que decorava a sala e o choro da
pequena Lis se mesclava às notas da música clássica que nos embalava.
“caraaaaaaaaaaaaaalho, não vou agüentar, pelamordedeus, se tivesse no hospital
já teria pedido uma anestesia.... não, já teria feito uma cesárea” pensava eu,
mas tudo o que eu conseguia falar era aaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh...
Por volta
das 22hs a posição mais confortável que eu encontrei foi sentada na privada,
assim aproveitava e fazia xixi e podia me apoiar na parede da frente durante as
contrações.... e a cada grito meu, minha sobrinha respondia ainda mais alto... e
às 23hs o resto da mini pizza e o suco de uva voltaram à tona entre uma
contração e outra – nem me levantei e vomitei no bidê ao lado. Meu cunhado
ligou para a médica, disse que ia entrar no banho rapidinho e já estaria de
volta.
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, eu não vou aguentaaaaaaaaaar. Buáaaaaaaaaaaaaaa
respondia a Lis.
E imaginava
o quarto delivery no hospital São Luiz, um lugar espaçoso e amplo, com
iluminação especial, som ambiente, banheira de parto, um lugar onde os partos
não doem.... meu paraíso... aaaaaaaahhhhhhhhhhhhhh....
buuuuaaaaaaaaaaaaaaaaa....
Para
acalmar um pouco a Lis, Leandro a levou para dar uma volta no prédio e deixou
minha irmã me doulando. Ela sugeriu que eu entrasse no chuveiro para tentar
aliviar um pouco a dor – e confesso que não aliviou porra nenhuma, só aumentou
minha vontade de fazer cocô... “é seu bebê que está chegando, Kika” foi a resposta.
“Como assim? Não tá na hora!”. Você consegue colocar a mão lá? Vê se você sente
alguma coisa? Nãaaaaaaaaaaaao, não consigo.... Vamos fazer um teste, senta na
privada e na próxima contração ao invés de fazer o ahhhhhhh, faz a respiração
para dentro, como se fosse fazer cocô mesmo. Tá, ok. Hmmmmmmmmmmmmmmmmmm –
agora põe a mão lá e vê se você sente alguma coisa... aaahhhhh, tem alguma coisa pressionando minha pele.... é a
bebê! Mas não pode ser, dizia eu, ainda não esta aberto, não tem dilatação, não
tem por onde sair... Ah, tem sim – pode escolher, você quer ir para a sala ou
para o quarto??! Pensei no tapete branquinho da sala, vamos para o quarto!
Fiquei de joelho na cama e gritava mais alto a cada contração...
Alô,
Betina, o bebê da minha irmã tá chegando
-
Eu
estou no subsolo, não consigo chamar o elevador
-
Ah,
sobe um andar de escada, no subsolo ele fica bloqueado
-
Kika,
faz força na contração....
-
Aaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
-
Betina,
está saindo o mucus plug, eu não lembro o nome em português, mas está saindo...
Kika, é o primeiro sinal que seu bebê vai nascer!
-
O
elevador está desligado! E o outro tem alguém segurando! Fala pra sua irmã não
fazer força...
-
Kika,
na próxima contração, faz força
-
Aaaaaaaaaajjjjjjjjjjjjjjjjjjasdfasdfasdfasdfasdfasdfasdfasdfasf
-
Isso,
saiu a cabecinha, na próxima faz de novo e vai sair o corpo, tipo assim
pluft...
-
Espero
que não me rasgue, foi a única coisa que pensei! E
aaajjjjjjjjjjjjafffffffffffffffffff
-
Pronto!
Nasceu!!!!!!!
-
Chora,
chora, chora, chora....
-
Buuuaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Ufa.
e o tempo parou. Os minutos transformaram-se em horas e o mundo passava
em câmera lenta dentro de um apto na Grande São Paulo.
Enquanto eu pulava o cordão umbilical para me sentar, a médica entrava
no apartamento e minha irmã segurava a pequena... quer? Quer segurar?
-
Calma,
calma, deixa eu me sentar...
E em poucos segundos Gabizinha estava nas minhas mãos, tentando sugar um
peito que eu nem sabia direito como lhe oferecer....
“Deixa eu dar uma examinada para ver como está”
“Cortou? Rasgou?”
“Ah, tudo bem, só uma raspadinha na lateral, mas em 3 dias fica tudo
ótimo”
Ufa.
“Que horas nasceu?” – perguntava meu cunhado ao entrar no quarto...
“Faz um pouco de força para sair a placenta”
“Deixa eu ver?”
E chorei ao ver o pedacinho vivo de mim que cuidou tão bem da minha
petit e a manteve abrigada e alimentada por 41 semanas e 5 dias...
Você tem fio dental para amarrar o cordão?
“Segura aqui, sente o cordão pulsar˜
Não sentia nada, tremia, o mundo ainda caminhava devagar...
“Quer cortar?”
“Chama minha irmã”
“Nossa, que duro”
“Toma um banho devagar, mas não lava a cabeça”
“Você tem pano de chão? E outro lençol?”
“Tem um balde para eu lavar a bebê?”
“Ixe, esse absorvente pós parto é muito pequeno, vou pegar uma fraldinha
dela para você”
“Você prefere que a gente fique aqui com você essa noite? Ou a médica?”
E quando eu saí do banho, a cama estava arrumada, os restos de mini
pizza e suco de uva tinham sumido e Gabizinha dormia na minha cama, vestida com
uma fraldinha, o cabelo cheio de pedacinhos de um sebo branco, o cheiro, ahhhh,
o cheiro embriagava o ambiente.... cheiro de bebê tem cheiro de placenta, da
minha placenta, do meu bebê.
E fiquei ali, a noite inteira, deitada ao lado da petit, observando cada
pedacinho, cada detalhe... e ainda hoje quando olho para ela, sinto um aperto
no peito e meus olhos se enchem de lágrimas.
23h48. Esta foi nossa abençoada hora.